Porto Velho, RO, 23 de novembro de 2024 21:13

PEC que limita poderes individuais não é ataque ao STF, diz autor de livro sobre Supremo

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp

Um dos principais estudiosos do STF, constitucionalista Diego Werneck é crítico longevo do excesso de decisões monocráticas que Senado agora quer limitar.

Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) reagiram com preocupação a uma proposta aprovada no Senado nesta quarta-feira (22/11) para limitar poderes individuais de integrantes da Corte.

Nas palavras de Gilmar Mendes e de Alexandre de Moraes, o avanço da matéria no Congresso teria como motivação promover “ameaças” e “intimidações” contra o Tribunal.

A visão não é compartilhada por uma dos principais estudiosos do STF, o constitucionalista Diego Werneck, professor do Insper e autor do livro O Supremo: Entre o Direito e a Política.

Na sua visão, a proposta de emenda constitucional (PEC) que limita poderes individuais dos ministros é “bem-vinda” e busca corrigir um problema antigo de abuso no uso das decisões monocráticas, como a prática de suspender individualmente leis aprovadas pelo Congresso.

“É muito difícil enxergar nisso (a PEC aprovada no Senado) um ataque ao Tribunal, especialmente porque eu não consigo ver como seria fundamental para o Tribunal exercer seu papel na democracia brasileira que ministros possam suspender leis individualmente”, disse à BBC News Brasil.

“Esse poder é raríssimo. Eu não conheço nenhum outro caso (de Corte Suprema no mundo) em que ministros individuais tenham tanto poder decisório como no caso brasileiro”, disse ainda.

Werneck lembra que as críticas de juristas ao excesso de decisões individuais no Supremo é antiga e que o próprio STF acabou restringindo esses poderes em dezembro do ano passado, quando uma alteração do regimento interno da Corte foi aprovada durante a presidência da ministra Rosa Weber, agora aposentada.

Essa mudança passou a obrigar que ministros levem imediatamente ao plenário decisões monocráticas — antes, podiam segurar o caso indefinidamente. A PEC aprovada no Senado, porém, amplia essas restrições, ao proibir que ministros tomem decisões individuais em algumas situações, como ações que pedem a anulação de leis.

A proposta ainda depende de aprovação na Câmara dos Deputados para entrar em vigor. Na visão de Werneck, alguns pontos ainda precisam ser aprimorados. “O núcleo da PEC é positivo, mas tem arestas que merecem discussão”, ressalta.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista, feita por telefone e editada por concisão e clareza.

BBC News Brasil – Para alguns, a PEC é um ataque ao STF. Para outros, ela é positiva ao limitar o uso abusivo de decisões monocráticas. Qual a sua avaliação?

Diego Werneck – Com certeza, em termos do que foi de fato aprovado, não é um ataque. As pessoas podem confundir a motivação de algumas pessoas que votaram pela PEC (com intuito de atingir a Corte de alguma forma), mas acho que a análise tem que ser sobre o que a PEC de fato faz.

Uma PEC que reduz o poder de decisão individual de ministro do Supremo, mantendo o poder da instituição de decidir as mesmas coisas (colegiadamente), não pode, para mim, ser considerado um ataque à instituição.

O cerne dessa PEC atua sobre um problema que é diagnosticado e criticado na área há muito tempo. A ponto do próprio Supremo ter tomado alguns passos nessa direção, em dezembro do ano passado, com a emenda regimental aprovada da gestão da ministra Rosa Weber, para reduzir o espaço para poder individual dos ministros do Supremo.

É muito difícil enxergar nisso um ataque ao Tribunal, especialmente porque eu não consigo ver como seria fundamental para o Tribunal exercer seu papel na democracia brasileira que ministros possam suspender leis individualmente. Esse poder é raríssimo, difícil de encontrar em termos comparados. Eu não conheço nenhum outro caso (de Corte Suprema no mundo) em que ministros individuais tenham tanto poder decisório como no caso brasileiro.

BBC News Brasil – O autor da PEC, senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), cita na justificativa da proposta um conceito que o senhor criou: a ministocracia. O que seria isso?

Diego Werneck – Esse foi um artigo que eu escrevi em 2018 com o Leandro Moreno Ribeiro, um cientista político da FGV do Rio, e que é resultado de outras coisas que a gente foi escrevendo ao longo dos anos e que também se beneficia de dados e críticas produzidos por uma geração de pesquisadores.

Nesse artigo, a gente observa que o Supremo é um tribunal que dá amplo poder para ministros afetarem o mundo fora do Tribunal sem passar pelo controle do colegiado.

Por exemplo, construindo a agenda do Tribunal por ação unilateral ao suspender um julgamento em andamento com pedido de vista e, assim, impedir que o Tribunal decida alguma coisa. E, com isso, permitir que certos efeitos políticos fora do Tribunal (relacionados ao julgamento paralisado) se consolidem.

Ou então, quando um ministro individualmente fala na imprensa e sinaliza para fora o que pode ser uma decisão futura do Tribunal. Com isso, o ministro que fala pra fora, na nossa leitura, ele não está só querendo aparecer, ele está exercendo poder, ele está tentando fazer com que atores políticos fora do Tribunal não façam certas coisas ou façam certas coisas, acreditando que esse ministro está sinalizando uma decisão futura do Supremo.

E o terceiro pé desse diagnóstico é o poder de decisão monocrático, em que você tem o poder individual, inclusive de suspender uma lei, que é praticado rotineiramente pelos ministros. Isso vinha sendo o cenário do Supremo até dezembro do ano passado, até a emenda regimental da ministra Rosa Weber.

Então, “ministrocracia” é o rótulo que a gente encontrou para passar uma imagem que corresponda a esse diagnóstico de um Tribunal em que ministros individuais tem variadas maneiras de afetar o mundo fora do Tribunal, exercer, portanto, o poder que seria do Tribunal, mas individualmente, sem controle do colegiado, às vezes tomando decisões sem apoio da maioria da Corte.

BBC News Brasil – O senhor poderia dar alguns exemplos?

Diego Werneck – O ministro Joaquim Barbosa (já aposentado), em 2013, suspendeu uma emenda à Constituição que criou um novo Tribunal Regional Federal (TRF) e até hoje essa decisão monocrática nunca foi julgada pelo plenário.

A ministra Cármen Lúcia, por decisão monocrática, suspendeu a lei de mudava o regramento (da distribuição entre Estados e municípios) dos royalties do petróleo.

O ministro Gilmar Mendes, num mandado de segurança, suspendeu a indicação do Lula na época para ser ministro-chefe da Casa Civil da presidente Dilma.

O ministro Luiz Fux mandou voltar a tramitação no projeto de lei das chamadas dez medidas contra corrupção (após a Câmara rejeitar a proposta).

São casos que não houve decisão do plenário (depois).

Sem dúvida, não podemos dizer que esses eram casos em que o colegiado estaria pacificamente em torno daquela posição (adotada individualmente), que eram casos fácies, que era casos de pouca magnitude, ou que eram casos repetitivos (em que já haveria uma posição do colegiado).

Então, o núcleo dessa PEC é bem-vindo porque me parece que não tem justificativa para os ministros terem esse poder individual como têm no Tribunal.

BBC News Brasil – Como o senhor disse, o próprio STF já reduziu os poderes individuais na gestão da Rosa Weber (que se aposentou no fim de setembro). Qual seria o impacto dessa PEC aprovada no Senado, se de fato entrar em vigor?

Diego Werneck – O texto que foi aprovado deixou de fora novas regras sobre o pedido de vista (que inicialmente estavam na PEC).

É um ponto que a resolução aprovada em dezembro já coloca um limite muito importante (ao criar um prazo de 90 dias para liberação do caso).

Isso tem um potencial revolucionário no Supremo, de reduzir muito o espaço para obstrução individual no Tribunal por meio de pedido de vista. Então, acho que foi acertada a decisão do Senado de não incluir regras diferentes sobre isso.

Agora, na questão das decisões monocráticas, a PEC avança assim em relação ao que a resolução da ministra Rosa Weber tinha feito.

O que a emenda regimental fez foi tirar do relator que concede uma liminar monocrática a opção de não liberar (o caso) para julgamento dos seus colegas (pois agora isso ocorre automaticamente).

Então, o ministro pode decidir individualmente, mas agora ele ou ela, ao conceder uma cautelar, automaticamente essa cautelar está liberada para apreciação do colegiado, no mínimo no plenário virtual.

O que essa PEC faz que é mais radical? Ela afeta o poder de decidir individualmente em si. Ela coloca, por exemplo, que o ministro não pode mais suspender individualmente uma lei aprovada pelo Congresso, por exemplo.

Isso não significa que ele não possa, como relator, levar imediatamente para o plenário virtual a proposta de uma decisão liminar que suspenda a lei.

E, se o plenário virtual continuar funcionando como tem funcionado, essa decisão inclusive pode acontecer numa sessão extraordinária, em questão de dias.

Então, o que essa PEC muda é a possibilidade do ministro decidir sozinho. É uma mudança significativa. Porque a regra adotada no Supremo ainda permite que o ministro decida individualmente e, portanto, mude o status quo fora do Tribunal. Isso tem um peso muito grande na política brasileira. É a diferença entre um ministro dizer ao plenário “vocês concordam em suspender essa lei?” ou dizer “suspendi essa lei; vocês querem anular minha decisão?”.

BBC News Brasil – O senhor disse que esses poderes individuais não são comuns em Cortes Supremas de outros países. Como funciona em outros tribunais constitucionais?

Diego Werneck – Acredito que o poder de decisão individual é maior (no STF do que em outras Cortes Supremas).

Claro que outros países têm também a possibilidade de algumas decisões de emergência serem tomadas individualmente, mas há alguns elementos que singularizam o caso brasileiro.

Então, uma coisa é você dizer que na Suprema Corte americana é possível o juiz individualmente conceder uma suspensão de aplicação da pena de morte em determinado caso, ou mesmo, como aconteceu algumas vezes nos últimos anos, de um juiz determinar a suspensão da execução de algum ato para levar imediatamente para aprovação do Tribunal.

Só que essas decisões me parecem muito raras. Mesmo quando esse poder existe, ele é um poder muito mais emergencial, um poder que geralmente vai ser usado com menos frequência.

Não é o que tem infelizmente acontecido no caso brasileiro.

Nos modelos de Justiça sobre os quais a gente tem mais informação, na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa ocidental, é difícil imaginar um país em que você possa ter na ponta da língua exemplos de 10 decisões de altíssima magnitude política tomadas por ministro individuais.

E a gente tem isso no Brasil nos últimos cinco anos, na última década com certeza.

BBC News Brasil – O STF tem sido alvo de muitos ataques. Essa atuação individual contribuiu para isso? A Corte tem responsabilidade por seu desgaste?

Diego Werneck – Sem dúvida, é impossível explicar a posição do Supremo na sociedade brasileira, inclusive as críticas que são feitas, sem considerar essa trajetória, tudo que os ministros fizeram, os problemas e disfunções da instituição que deixaram de resolver ao longo do tempo.

Mas eu não endosso a ideia de que ataques ao Supremo se justificam por isso.

É muito importante a gente separar o que é um extremismo, que, na verdade, se utiliza oportunisticamente de diagnósticos que existem há muito tempo na área para atacar o Tribunal.

Por exemplo, entre o primeiro e segundo turno da eleição do ano passado, alguns atores do campo bolsonarista, como próprio presidente Bolsonaro e o então senador eleito Hamilton Mourão, queriam discutir uma PEC para aumentar o tamanho do Tribunal.

Ora, isso é absurdo. Você está diagnosticando que o Tribunal tem usado de forma excessiva poderes que estão sujeitos a controle, e aí a sua solução é “então deixa eu controlar esse tribunal para mim”.

Então, acho que é importante separar as propostas que não reduzem o poder da instituição, sua capacidade de ser um limite relevante na política, de propostas que se aproveitam de muitas críticas justificadas para ir procurar o controle, a captura do Tribunal.

Dito isso, eu acho que dá para dizer que o Supremo tem uma parte de responsabilidade pelas críticas públicas feitas hoje a ele.

E eu acho que as decisões monocrática especificamente contribuíram muito (para o desgaste do Supremo).

BBC News Brasil – Como?

Diego Werneck – Porque, quando você dá uma decisão monocrática num caso de alta magnitude, você está passando a ideia de que faz diferença (para a resolução do caso) quem é o relator.

Quando você decide no colegiado, você dilui essas individualidades.

Mesmo que os ministros vão ter suas posições, vão brigar na TV, vão criticar uns aos outros, mas existe um voto final ali coletivo, que de certa forma protege o Tribunal, atribuindo a decisão à instituição.

Houve debate e uma maioria prevaleceu.

Quando você decide individualmente, esses controles somem, você permite que ministros possam agir de forma mais influenciada por seus vieses individuais.

E eu acho que as pessoas percebem isso.

Cito por exemplo a decisão do ministro Gilmar Mendes de suspender a indicação do Lula para ser chefe da Casa Civil da presidente Dilma.

Aquela era uma decisão que é difícil imaginar que qualquer ministro do Supremo tomaria.

É muito difícil ler aquela decisão e imaginar que não foi decisivo (para o impedimento da posse de Lula) ter sido o ministro Gilmar Mendes o relator daquela decisão.

Então, poder individual demais é tóxico para o Tribunal, é tóxico para percepção pública sobre o Tribunal.

Isso reforça a ideia de que quem está lá individualmente, na loteria da relatoria do Tribunal, é que vai ser decisivo para saber se o direito vai numa direção ou em outra.

E não deveria ser surpresa que um poder deixado à discricionariedade de um agente estatal individual pode ser abusado. Isso é direito constitucional básico.

Se você deixa grande poder nas mãos de pessoas que podem usar esse poder sem controle, mesmo que de boa-fé, elas vão muitas vezes usar esse poder de modo excessivo.

BBC News Brasil – Apesar de considerar a PEC positiva, o senhor vê alguma intenção do Senado de emparedar o STF ao aprovar a proposta nesse momento? Para alguns analistas, a votação ocorreu agora como uma resposta de parlamentares conservadores ao avanço de pautas progressistas na Corte, como a rejeição do marco temporal para territórios indígenas e o andamento de um julgamento que pode descriminalizar o porte de maconha para consumo.

Diego Werneck – Deixa eu registrar uma coisa: quando a PEC limita o poder de decisão individual em caso de leis aprovadas pelo Congresso, eu acho que ela é positiva.

Mas não acho que tudo que ela faz seja a melhor solução. É importante que se discuta na Câmara alguns dos detalhes da PEC.

Por exemplo, eu acho que é muito mais fácil você defender que o poder de decisão monocrática deve ser eliminado no caso de suspensão de leis do que (ser eliminado no caso) de quaisquer atos dos chefes de Poderes (como também prevê a PEC).

Eu, por exemplo, ficaria um pouco preocupado que a gente passasse por um novo processo de impeachment e não existisse a possibilidade de uma decisão muito equivocada do presidente da Câmara, por exemplo, determinando um procedimento que seja altamente mal-intencionado na véspera de uma votação relevante, que isso não possa ser objeto de uma decisão liminar de um dia para o outro.

Então, o núcleo da PEC é positivo, mas tem arestas que merecem discussão.

Agora, a sua pergunta foi sobre a motivação (por trás da aprovação da PEC).

Quando a gente trabalha com regras no Estado de Direito, a gente vai ter que aceitar que muitas vezes as pessoas vão usar os poderes de que dispõem de uma forma que a motivação pode não ser a melhor.

Se todas as leis (para serem aprovadas) tivessem uma comprovação de uma motivação nobre por trás, seria difícil que qualquer reforma se sustentasse.

Então, como análise política, é totalmente importante você tentar observar porque que o Senado fez isso agora.

Mas isso não pode ser em si uma justificativa ou uma crítica da PEC.

A PEC tem que ser criticada nos seus próprios termos. Ela cria um perigo de fato?

esse ponto de eliminar a decisão monocrática para suspensão de lei, eu não vejo perigo.

BBC News Brasil – Qual sua avaliação sobre outras propostas em discussão no Congresso, como fixação de mandatos para os ministros, idade mínima para ingressar na Corte ou a possibilidade de o Congresso cassar decisões do STF?

Diego Werneck – Algumas dessas propostas são muito complicadas.

Por exemplo, o Congresso poder caçar decisões específicas pode configurar uma violação da cláusula pétrea (dispositivo da Constituição que não pode ser alterado) de separação de Poderes.

Uma coisa é o Congresso superar o entendimento do Supremo por meio de emenda constitucional (aprovar uma alteração da Constituição pra reverter um julgamento do STF).

Outra coisa é o Congresso dizer: “essa decisão que você tomou aqui não vale”.

Isso me parece uma intrusão excessiva no que é o poder necessário para um tribunal agir com independência e autoridade na sua função de guardião da Constituição.

Quanto a aumentar a idade mínima (para o ministro entrar no STF), sem dúvida não tem inconstitucionalidade alguma em você mudar uma regra para o futuro. Acho positiva (essa mudança).

A gente tem que pensar quais são as regras que tendem a gerar o tipo de indicação que a gente imagina que vai ter a experiência, a prudência, a visão de conjunto do direito, a trajetória profissional que viabiliza uma altivez necessária e uma experiência necessária para exercer essa função importantíssima.

Mas esse debate deve ser feito com calma também. Acho que o perigo é a gente chutar uma idade.

E sobre mandatos, pessoalmente sou a favor. Gostaria que houvesse mandato fixo igual para todos os ministros, ainda que longo. Pode ser 16 anos, 18 anos, não tem problema. O importante é que todos fiquem o mesmo tempo, e que um ministro não fique 10 anos e outro 40 anos.

Explico no meu livro porque acho que mandatos são positivos. Mas por que mandatos também são mais perigosos na conjuntura? Porque quando você cria uma regra como essa, a primeira pergunta que você deve fazer é quem se beneficia dela do curto prazo.

Se tem atores políticos que, por estarem no poder agora e por poderem fazer as próximas indicações, de alguma forma vão ter uma influência desproporcional na formação da composição do Tribunal dos próximos anos, isso me preocuparia na conjuntura.

A gente tem que saber separar o que é uma boa ideia, com uma regra de transição ruim, e o que é uma boa ideia pensada para ser implementada de um jeito que, quem tá aprovando essa regra hoje, não saiba se vai ser prejudicado ou beneficiado nos próximos anos.

Fonte: CorreioBraziliense