Destaque
Mais um herói que parte silenciosamente – Eustáquio Chaves Godinho – Por Amadeu Machado
Faleceu Eustáquio Chaves Godinho.
Uma grande parte da população de Rondônia indagará:
Quem foi esse cara?
Um anônimo.
Os mais antigos, especialmente homens que lidam com a terra, com certeza lhes dirão quem foi Eustáquio.
— Ah, o Eustáquio do INCRA. Grande sujeito.
Pois é.
Os tempos velozes que vivemos estão fixados num presente ficticiamente alucinante e num futuro repleto de incertezas, preocupações e mil indagações.
Para as novas gerações não existe o passado.
Em uma de suas canções, Belchior diz textualmente que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
Mesmo que seja um passado bem recente.
Eustáquio chegou ao Território Federal de Rondônia quase um menino, ali pelo ano de 1972. Técnico agrícola era sua formação. Assis Canuto o contratou para trabalhar na operacionalização do Projeto Ouro Preto.
A participação de Eustáquio foi extremamente importante. Ele sempre foi dedicado e não media esforços para a realização das ásperas tarefas que lhe eram atribuídas.
Receber com boas-vindas os brasileiros de todos os cantos que chegavam aos borbotões, em busca de um pedaço de terra para chamar de seu, plantar, colher, sobreviver, criar seus filhos com esforço e muita dignidade, era a primeira tarefa dele.
Levar esses homens e suas famílias para os lotes que lhes eram destinados, dar-lhes orientações de sobrevivência na selva, como cultivar a terra, resolver pequenos e grandes conflitos agrários, salvar vidas em risco por ataques de animais, picadas de cobras, famílias inteiras agonizantes pela malária.
Perdeu-se a conta das malárias que ele teve. Os riscos que precisava enfrentar depois viravam causos, até cômicos, nos encontros de amigos.
Não havia hora, muito menos dia de semana. Fosse sábado, domingo, feriado, lá estava ele, permanentemente à disposição e sempre afável, apesar das agruras e dificuldades enfrentadas.
Estradas não existiam. Muitas vezes adentrava a mata amazônica e, munido de um facão, abria as primeiras picadas por onde guiava os intrépidos colonos até o local que lhes fora destinado.
Foram milhares de expedições levando apenas uma mochila e um facão, que por aqui se chama terçado.
Armar rede nas frondosas árvores, em boa altura para não virar refeição de onça, e dormir dando tapas em carapanãs. Mais tapas durante o dia nos ferozes piuns. Naquele tempo não se conhecia repelente. Quando havia disponibilidade, passava-se azeite na pele. O mosquito dava uma primeira sugada e entupia sua tromba.
Conheci Eustáquio em 1974. Passava por Ouro Preto, indo para Pimenta Bueno, onde estava ocorrendo um conflito agrário, e o encontrei organizando uma caravana de colonos que seriam levados para o Projeto Sidney Girão, em Guajará-Mirim, pois Ouro Preto estava saturado e não havia mais espaço para novos assentamentos.
Esse encontro o Eustáquio sempre lembrava quando nos víamos.
Mais adiante, ele foi designado para compor a equipe que iria promover a expansão do Projeto Ouro Preto, na localidade denominada Jaru, em função do nome do rio que por ali passa.
Tudo de novo. Colonos chegando em caminhões pau-de-arara ou em ônibus da Eucatur. Abertura de picadas, seleção de famílias para ganhar um lote, ou uma parcela, daí chamar-se parceleiro quem fosse contemplado.
No Projeto Jaru, a malária matou muitos. Sabe-se de pessoas que, acometidas pela febre, tentavam chegar à sede do INCRA, mas morriam pelos rústicos caminhos.
Era tanta malária que se dizia então que, na beira da poeirenta ou lamacenta BR-364, macacos ofereciam banana em troca de aralen (medicamento usado para debelar a doença, cujo princípio ativo é a cloroquina).
Eustáquio, mais uma vez, cumpriu galhardamente sua missão.
Depois, teve passagem por Ariquemes em seus primórdios e, bem mais adiante, chegou à sede do INCRA, em Porto Velho, onde passou a atuar no sistema de regularização fundiária.
No manuseio dos processos para a expedição de títulos definitivos, Eustáquio conhecia todas as pessoas. Ia aos locais verificar a implementação dos requisitos para a outorga do sonhado documento de propriedade e, mesmo sendo técnico agrícola, dada sua dedicação e permanente busca pelo aperfeiçoamento, tornou-se um dos mais destacados conhecedores do direito agrário.
Estudava detidamente toda a legislação, decretos, portarias, resoluções, instruções e as aplicava com imensa sabedoria.
Sua sala no INCRA estava sempre cheia de gente, humildes ocupantes de terras públicas que buscavam informações e orientações. A todos atendia com cortesia e eficiência.
Milhares de títulos foram chancelados por ele.
Muito jovem faleceu sua esposa, Joana D’Arc, e ele assumiu a criação dos filhos, sendo pai e mãe, aos quais se dedicou com muito carinho e esmero.
Em seu velório, estavam toda a família, alguns amigos e colegas de serviço, mesmo estando ele aposentado.
O vi no esquife, de onde partiu para a última morada. Fiz uma oração pela sua alma e, intimamente, lancei um preito de gratidão ao ex-colega e eterno amigo.
Foi um gigante. Será sempre um herói. Pena é que o passado é uma roupa que não serve mais.
Em breve, aquela geração maravilhosa de verdadeiramente destemidos pioneiros estará extinta, e todos serão apenas sombras de um passado remoto e totalmente desconhecido.
Dito isso, resta lançar a frase-síntese:
UM POVO SEM MEMÓRIA É UM POVO SEM HISTÓRIA.
Eustáquio faz parte da fantástica e heroica história da construção de Rondônia e é merecedor de homenagens que o perpetuem na memória de todos os rondonienses. Fonte: expressaorondonia.com.br
