Brasileiros com renda média mensal de R$ 4.000 sofrem a mesma cobrança de IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) de quem ganha R$ 4,1 milhões ao mês, segundo um estudo elaborado pela SPE (Secretaria de Política Econômica) do Ministério da Fazenda.

Enquanto a alíquota efetiva paga pelo primeiro grupo é de 1,73%, o imposto incidente sobre os ganhos do segundo -que reúne a fatia 0,01% mais rica entre os declarantes- corresponde a 1,76%.

A alíquota efetiva retrata a proporção do valor pago pelo contribuinte sobre o que ele declarou de renda e é menor do que a nominal (de até 27,5%) porque leva em conta isenções e abatimentos previstos em lei.

Embora os valores nominais recolhidos sejam de ordens de grandeza diferentes, a similaridade da alíquota efetiva mostra que, para esse seleto grupo de 3.841 contribuintes no topo da pirâmide, não se aplica a premissa de cobrar mais de quem ganha mais.

Na visão do governo, o quadro é fruto da isenção de rendimentos como lucros e dividendos distribuídos por empresas a seus acionistas, um exemplo de regra que contribui para acentuar a desigualdade de renda no país.

“No 0,01% mais rico, quase 70% da renda é isenta”, afirma a subsecretária de Política Fiscal da SPE, Debora Freire.

As disparidades foram elencadas no Relatório da Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira, elaborado pelo órgão com base em dados da declaração do IRPF 2023 (ano-calendário 2022).

A tabela do IRPF prevê atualmente isenção do imposto para ganhos até R$ 2.112 mensais e alíquotas progressivas que vão de 7,5% a 27,5%, conforme a faixa de renda. No entanto, Freire ressalta que a aparente progressividade da cobrança é, na prática, minimizada pelas isenções.

Se o conjunto de declarantes fosse dividido em uma escada com 100 degraus, a cobrança do imposto seria progressiva até o degrau 93, segundo a SPE. No topo, que reúne os 7% mais ricos, a lógica se inverte: quanto mais se ganha, menos se paga.

Os dados obtidos nas declarações do IRPF não refletem sozinhos o panorama integral da distribuição de renda no país, uma vez que apenas 38,4 milhões de brasileiros prestaram contas à Receita Federal. Mas as informações são um termômetro relevante da desigualdade.

A alíquota efetiva do 0,01% mais rico é menor até mesmo do que a cobrança sobre quem está no miolo da escada, que recolhe algo próximo a 3% dos seus ganhos. No degrau 93, a alíquota efetiva chega ao pico de 11%.

“A alíquota nominal do Imposto de Renda engana bastante. Ela é progressiva, como deve ser, para que cumpra com o princípio da capacidade contributiva, ou seja, quem ganha mais e quem tem mais renda deve ser mais tributado. Só que, quando se calcula a alíquota efetiva, a história não é bem essa”, afirma a subsecretária.

O diagnóstico é divulgado no momento em que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prepara sua proposta de reforma do Imposto de Renda, que precisa ser enviada até 19 de março, conforme prazo estipulado na emenda constitucional da reforma tributária.

A retomada da taxação de lucros e dividendos é justamente um dos pontos em discussão. Esses rendimentos eram tributados no Brasil até 1995, mas uma lei sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) isentou os valores a partir de 1996. Desde então, tentativas de retomar a taxação esbarraram nas resistências do andar de cima.

A subsecretária da SPE evita abordar detalhes da proposta em construção dentro da Fazenda, mas diz que a reavaliação das isenções é um dos “consensos” entre acadêmicos e membros da sociedade civil.

“O que se tem de consenso é que, de fato, há uma distorção em termos da renda isenta no topo da distribuição, a partir da isenção de uma série de rendimentos que são característicos do topo, e também por causa da tributação exclusiva. Duas medidas aprovadas no final do ano passado [tributação periódica de fundos exclusivos e offshores] são importantes para corrigir parte dessas distorções. É preciso olhar para os rendimentos isentos”, afirma Freire.

Em 2022, foram declarados R$ 607,6 bilhões recebidos em lucros e dividendos, dos quais R$ 438,1 bilhões concentrados nas mãos dos 384 mil contribuintes que formam o grupo de 1% mais rico entre os declarantes.

O grupo do 0,01% mais rico recebeu R$ 111,4 bilhões da renda com lucros e dividendos declarada à Receita.

Além do grande volume de rendimentos isentos, o topo também é o maior beneficiado pelas deduções legais -gastos que podem ser descontados da base de cálculo do imposto.

Elas incluem despesas com assistência médica privada (sem limite de valor), com educação privada (até R$ 3.561,50 por dependente) e escrituradas em livro-caixa (trabalhadores não assalariados, titulares de cartórios e leiloeiros podem abater gastos com custeio da atividade).

Considerando o total de contribuintes, dois terços das deduções ficaram concentradas em despesas médicas e contribuições ao INSS. No 1% mais rico, porém, os principais abatimentos foram realizados por livro-caixa (43,4%), despesas médicas (22,7%) e contribuições à previdência privada (13,3%).

“Uma série de estudos mostra que as deduções, da forma que estão hoje, trazem algumas distorções”, diz Freire.

O relatório divulgado pela SPE também faz uma análise da desigualdade de gênero a partir das evidências colhidas nas declarações. Os resultados mostram que, nos estratos mais elevados de renda, a disparidade é maior, evidenciando a predominância masculina no topo da pirâmide econômica do país.

Nesta comparação, os dados analisados são da declaração do IRPF de 2022 (ano-calendário de 2021). Segundo os números, quanto maior a faixa de renda, menor a participação das mulheres entre os declarantes.

Enquanto elas representam mais de 40% da renda total declarada em todas as faixas até 15 salários mínimos (até R$ 16.500, considerando o piso vigente em 2021), a participação das mulheres cai para 13,1% no grupo que recebe por mês mais de 320 salários mínimos (R$ 352 mil).

A discrepância entre os gêneros é ainda maior na declaração de patrimônio (bens líquidos), em que as mulheres tiveram participação de 29% no total declarado.

A média individual de bens líquidos declarados naquele ano para mulheres foi de R$ 233,9 mil, valor 46,1% menor do que os R$ 433,1 mil para homens.

O estudo mostra ainda que, embora as mulheres representem uma parcela menor entre os declarantes, elas são as mais tributadas. Em 2021, a renda tributável foi de 59,4% para mulheres e de 49,5% para homens.

Esse cenário é explicado em boa medida porque as mulheres possuem menos patrimônio e ativos financeiros e de capital, o que resulta em menor renda de tributação exclusiva ou isenta.

“Como a renda do topo é majoritariamente masculina e grande parte é isenta, os homens têm uma proporção de isenção de sua renda maior”, afirma Freire. “Isso faz com que as mulheres declarantes enfrentem uma carga de IRPF maior do que os homens.”

Os tipos de vínculos de trabalho também ajudam a explicar o fato de as mulheres terem maior proporção de renda tributável que os homens. Elas, por exemplo, têm maior participação no serviço público civil e militar -no qual a remuneração média é superior à do setor privado e conta com pouca margem para isenções.

“O IRPF acaba atuando como um instrumento amplificador da desigualdade de gênero. A revisão de isenções fiscais parece ser o caminho para dirimir essa distorção”, diz o relatório.

Fonte: Notícias ao Minuto